sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O MISTERIOSO CAMINHO MILENAR 2ª Parte



Forrado com grama

Em textos antigos e modernos o Caminho aparece descrito de modos variados. Os jesuítas viram parcelas dele no PR e SP e informaram que tinha 8 palmos de largura (mais ou menos 1,40 m) e um talude de cerca de 40 centímetros. Vestígios encontrados em Pitanga (PR) por Clemente Gaioski têm esse perfil.

É comum pensar-se que o Peabiru era uma trilha aberta na mata. Efetivamente, muitos de seus trechos assim o foram. Alguns estudiosos, entre eles Hernâni Donato do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), indicam porém que dependendo do terreno (selva, pântano, zonas pedregosas, areais, etc), o Caminho tinha características diferentes.


Se o considerarmos como integrante da estrada pré-inca e inca, nos Andes ele possuía sofisticações, tais como calçamento, canaletas com água potável, pontes, escadarias, alojamentos para mensageiros, etc.

Há relatos, ainda não confirmados, de que também trechos no Brasil eram pavimentados com pedras. Donato cita dois prováveis achados: um perto da aldeia de Meruri (MT) e outro do rio Miranda (MS).

Já a famosa escadaria do Monte Crista (Garuva, SC) não é obra pré-colombiana do Peabiru, como sugerem alguns escritores e guias turísticos, pois seu calçamento com pedras se deu no tempo do imperador Pedro II. (Obs: Antes do calçamento, porém, ali existiu um "caminho curto" indígena, considerado importante.)

Para Donato, em outros segmentos, conforme o ambiente circundante, a trilha era marcada com estacas (caso de zonas pantanosas e areais). Isso efetivamente ocorreu em trechos pré-incas e incas. Mas no Chaco, Pantanal e areais brasileiros e paraguaios tais estaqueamentos ainda não foram confirmados.

O mais provável é que a marcação do Caminho, nesses locais, fosse através de localizadores geográficos (rios, montes, rochas, etc). É o que pensa a diretora do Museu Andrés Barbero de Assunção, Paraguai, a historiadora Adelina Pussineri, que nos disse numa conversa em 2007 :

"Nessas zonas não havia nenhum marco ou estaqueamento do Caminho, mas sim o infalível conhecimento dos índios. Esse conhecimento era primordial ao caminhante, pois até hoje, perder-se no Chaco é morrer".

Aponta-se ainda a existência de localizadores artificiais, espécie de "mapas", tais como pedras com desenhos gravados em baixo relevo (marcas de pés humanos; cruzes indicando os pontos cardeais, etc), monólitos com significado astronômico, e outros.

No final dos anos 1500, o Peabiru (Peabiyú, Peabeyú ou Peavyju) brasileiro e paraguaio foi mencionado como "um caminho bem marcado" por Ruy Diaz de Guzmán, nascido no Paraguai em 1560 e tido como o primeiro historiador daquele país.

Nos anos 1600 e 1700, jesuítas o descreveram como sendo forrado com uma grama miúda.

Coincidentemente, no fim dos anos 1800 o cientista suíço Moisés Bertoni, que viveu no Paraguai durante décadas, informava que os guaranis sempre semearam suas trilhas com diversas gramináceas de sementes glutinosas, que aderiam aos pés dos caminhantes, replantando-se sozinhas.

Há destacados estudiosos que negam a existência do Peabiru como uma via do Atlântico ao Pacífico. Vêem-no como um caminho de ligação entre aldeias guaranis, notadamente brasileiras e paraguaias, sem uma característica transcontinental. Por outro lado, há informações de autores brasileiros, latino-americanos e europeus confirmando a transcontinentalidade.

Existe também uma visão indígena (principalmente guarani) acerca de um "Caminho Comprido", solar, de oceano a oceano. Visão que indicaria o Peabiru como sendo transcontinental.


Uma estrada para "ir e vir"

Polêmicas à parte, o ex-governador do Paraguai, Álvar Nuñes Cabeza de Vaca, por exemplo, contou sua comprida viagem desde S.Catarina até Assunção em 1541/1542, usando "o caminho feito por estes índios...".

Diaz de Guzmán falava que espanhóis utilizaram o caminho de uma "comarca" de índios, no Paraná, chamada por ele de Peabeyú. Obs: A grafia mais correta seria Peabiyú.

Aqui cabe um parêntesis: há autores modernos que duvidam da existência histórica do vocábulo "Peabeyú" (ou Peabiyú), porém acreditamos tratar-se de um equívoco justificável.

Pois a palavra está no manuscrito de Guzmán, de 1612, apenas aludindo à "comarca" indígena e não a uma estrada. No entanto, aparece como um caminho "bem marcado" dos ancestrais guaranis, e utilizado "para ir e vir", na primeira edição do manuscrito feita em livro, em 1835.

O padre Ruiz de Montoya, fundador das célebres reduções do Guairá (nome de amplo território no hoje estado do Paraná), contava em 1639 que ele e seus companheiros jesuítas viram naquela área "...um caminho que tem oito palmos de largura...". Tal trilha, segundo ele, era longa e percorria também zonas de SP. O jesuíta Pedro Lozano falou igualmente dela em 1739, escrevendo pela primeira vez o termo "Peabiru", como o conhecemos hoje.

Para Donato, um dos maiores pesquisadores do assunto, não há o que discutir sobre a existência do Caminho: "Dezenas de personalidades viram, usaram, testemunharam".

Quanto à palavra Peabiru há fortes indicativos de que seja integralmente tupi-guarani. Havendo pouca chance de tratar-se de vocábulo híbrido, resultante de mistura dos idiomas tupi-guarani e quêchua (inca), como vem sendo dito por alguns estudiosos.

Estes afirmam que a composição seria formada por "Pea" ("Caminho" em tupi-guarani) e por "Piru" ou "Biru" ou "Viru" ("Peru", em suposto quêchua), resultando assim "Caminho ao Peru".

Creio que eu mesma sou responsável por tal equívoco. Pois em livro publicado em 1996, não forneci o esclarecimento necessário. Informei apenas que o Peru, em tempos antigos, foi chamado de "Piru".

Sim, Piru efetivamente foi nome antigo. Mas era usado somente pelos espanhóis dos velhos tempos da conquista. A palavra não pertencia à língua quêchua e não foi utilizada por incas ou pré-incas para denominar seu território. Minha falta de esclarecimento pode ter provocado a confusão. Feita a ressalva, continuemos.

Registrado desde o século 16 por cronistas europeus e mestiços, o nome do Caminho foi escrito de várias maneiras. Como: Peabiru, Peavyju, Peavirú, Peabiyú, Peabeyú, etc. Há também as formas Tape Aviru e Tape Abiru, como se fala no Paraguai.

Obs: O padre Bartomeu Meliá, premiado linguista, antropólogo e etnógrafo espanhol, residente em Assunção, acredita que essas duas versões paraguaias não são tão antigas quanto "Peabiru" (ou "Peabiyú").

Para o termo, existe uma grande variedade de traduções. As mais comuns e conhecidas são: "Por aqui passa o caminho antigo de ida e de volta", "Caminho pisado"; "Caminho forrado"; "Caminho macio", "Caminho terraplenado", "Marca do caminho"; "Caminho que leva ao céu", entre outras.

Tivemos acesso a um bem cuidado estudo, que ainda está sendo finalizado por José Alberto Barbosa, de Jaraguá do Sul (SC), professor, ex-promotor público, membro do Instituto Histórico e Geográfico de SC, que oferece outras sugestões valiosas. Estas deverão ser publicadas no 2º volume de nosso História do Caminho de Peabiru.

Quem construiu?

As hipóteses sobre a "construção" do Peabiru são múltiplas. Vamos apresentar 4 delas, as mais conhecidas:

1. Caminho dos itararés
– Esta hipótese supõe que o Peabiru tenha sido aberto pelos itararés, antigo povo cerâmico do sul do Brasil, de provável vinculação com os jês.

Essa tese é defendida principalmente por Igor Chmyz, da UFPR. Na década de 1970, Chmyz encontrou trechos de um possível ramal do Peabiru no interior do PR, próximo a Campina da Lagoa.

Infelizmente destruídos pela agricultura, na "febre da soja", esses trechos estavam localizados nas proximidades de sítios arqueológicos itararés, o que levou o arqueólogo a estabelecer uma provável vinculação do Caminho com tal povo.

2.Caminho da Terra Sem Mal
– Esta hipótese supõe que o Caminho tenha sido aberto pelos guaranis. Atribui-se uma intenção religiosa a essa obra viária: a busca de um paraíso mítico, a Terra Sem Mal, que estaria localizada a leste, em algum lugar do Atlântico.

Grupos da tribo teriam se deslocado lentamente, do Paraguai para o litoral sul brasileiro antes de 50 d.C., chegando às nossas praias talvez em 450 d.C. (caso de S.Catarina). Parte do Peabiru teria sido aberto nessa migração.

Em nossas pesquisas, no entanto, observamos que outra parte do Caminho foi trilhado pelos guaranis a oeste, no rumo dos Andes e do Pacífico.

Com esse trecho oeste os guaranis provavelmente almejavam, entre outros objetivos, também a busca de um paraíso. A forte motivação religiosa dessa via, tanto para leste quanto para oeste, transformou o Peabiru, para a tribo, em algo envolto em segredos até os dias de hoje.

3.Caminho dos incas
– Esta hipótese supõe que o Caminho tenha sido aberto pelo povo inca. Neste caso, o Peabiru seria uma via feita pelo império de Cuzco para a prospecção de territórios interioranos do leste e também do Atlântico, visando uma meta religiosa (a busca do nascer do Sol, o deus Inti). Mas também objetivando uma futura expansão imperial.

A primeira incursão inca que atravessou a Bolívia e possivelmente entrou até ao Paraguai, pode ter acontecido por volta de 1400 d.C. A segunda ocorreu aproximadamente em 1480 d.C. e parece ter chegado mais longe, penetrando no Brasil até o MS e MT.

Conforme nossos estudos, teria sido nesta ocasião que os incas realizaram algo pouco conhecido por nossos historiadores: estabeleceram uma capital provincial na área. Essa cidade localizava-se na Bolívia, bem perto do Brasil.

A terceira iniciativa inca aconteceu talvez na primeira década de 1500 e parece ter sido ousada. Funcionários, chamados de "espiões do soberano", teriam recebido ordens de ir mais longe, a leste, investigando todo o território que pudessem. Não se sabe até onde os tais "espiões" chegaram, mas não se pode descartar que eles tenham visitado, mesmo que fugazmente, algo da costa sul brasileira (ou SC, ou PR ou SP).

4.Caminho de S. Tomé
– Esta hipótese, lendária, supõe que o Peabiru tenha sido aberto pelo apóstolo S.Tomé, que após passar pela Índia teria vindo à América.

A chegada ao litoral brasileiro, no passado, de um homem de pele clara, barbudo, descalço, trajando um camisolão sujo, "andando sobre as águas", foi contada por índios a portugueses e espanhóis, no século 16. Os indígenas o chamaram de Sumé. Os padres o reinterpretaram como sendo S.Tomé.

A versão corrente é de que Sumé/Tomé deixou o litoral e fez uma longa peregrinação ao interior da América do Sul. Nela, teria aberto o Caminho de Peabiru.

Teria se dirigido ao Paraguai, onde foi chamado de Pay Sumé, e aos Andes onde foi denominado de Kon Iraya (Kuniraya) pelos pré-incas.

No lago Titicaca, numa outra versão do mito, teria recebido o nome de Tunupa, Tunapa, Taapac ou Wiracocha. Após um período, ele teria ido embora pelo Pacífico, igualmente "andando sobre as águas".

Teria sido assim, nessa peregrinação, que Sumé/Tomé/Pay Sumé/Kon Iraya/ Tunupa/ Wiracocha teria aberto o Caminho, de oceano a oceano.

Em nossos estudos, enfrentamos uma grande dificuldade para entender como um caminho, no caso o imenso Peabiru, possa ter sido "construído" por um único povo indígena. Ou por um mito como Sumé/Tomé, mesmo que este tenha sustentação histórica, como acontece com muitas lendas.

Além disso, nossas investigações também nos levaram ao seguinte questionamento: será que não se pode imaginar que a abertura do Peabiru, de algum modo, tenha envolvido todos os citados nas 4 hipóteses e ainda outros povos indígenas anteriores?

Pois olhando-se o território abrangido pelo Peabiru (sul do Brasil, Mato Grosso do Sul, Paraguai, Argentina, Bolívia, Peru e Chile) verifica-se que diversas populações ali estiveram. Por exemplo: os sambaquieiros do sul-sudeste do Brasil (datação variando de cerca de 10.000 a 3.000 a.C.); os pré-agricultores andinos do Peru e Bolívia (cerca de 8.000 a.C.); os índios das planícies e Chaco do Paraguai (cerca de 6.000 a.C.); os povos agricultores andinos (cerca de 2.500 a.C.); os guaranis do Paraguai, antes da migração ao Brasil (cerca de 500 a.C.); os primeiros itararés do PR, SC, SP ou taquaras do RS (anos 800 a.C.); os povos do lago Titicaca da Bolívia, principalmente os de Tiahuanaco (1500 a.C. a 1200 d.C.).

Boa parcela desses grupos abriu e usou caminhos.Então, não seria plausível pensar que diversos trechos dessas rotas tenham sido reaproveitadas e/ou completadas por povos posteriores, por aqueles que visaram unir o Atlântico ao Pacífico (e vice-versa), formando então o chamado Peabiru?

Por enquanto preferimos imaginar que as 4 hipóteses podem ter sua validade. E que, se somarmos a elas a possibilidade de que trechos do Caminho se originaram de povos antigos, o entendimento ficará menos limitado e talvez mais próximo da "verdade", que ainda não conhecemos.

Um comentário:

  1. Maravilhosa essa matéria. Gostaria muito de conhecer esses vestígios em Pitanga-Pr. Alguém pode me informar se é possível e como faço para chegar ao local?
    juliocarneri@gmail.com

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