quinta-feira, 5 de maio de 2011

O MISTERIOSO PEABIRU (Parte 02)

Estamos postando a continuação do trabalho do pesquisador José Alberto Barbosa, de Jaraguá do Sul - SC intitulado Ytapecu, Rio Caminho Antigo, onde o autor se refere fartamente sobre o Caminho do Peabiru.



5 . Pessoalmente, como já o disse, não creio que o Peabiru seja um caminho aberto pelos incas. Pode, é claro, ter acontecido apenas que, durante o Império dos incas, estes o utilizaram, o conservaram, mesmo o ampliaram. Mesmo podem e devem ter por ele feito incursões pelas terras brasileiras, inclusive guerreiras, talvez mesmo punitivas. Mas não foram seus autores originais. Mais provavelmente, a meu ver, os tupis e guaranis, que inclusive disseram não haverem sido seus construtores, utilizaram intensamente o vasto sistema de estradas pré-colombianas estabelecido por algum outro povo, num passado não muito remoto e daí que foi encontrado ele assim, em pleno uso por referidas Nações indígenas, conforme testemunhos históricos. Tanto usavam tais vias que para muita gente do povo foram eles os autores de tais caminhos, tanto do grande Peabiru quanto dos caminhos menores, seus ramais, gerando-se uma tradição a respeito. Assim é que, por exemplo, na excelente obra “No tempo dos Bandeirantes”, Belmonte fala da antiga “Trilha dos Tupiniquins” [Uso maiúsculas para ressaltar a importância do nome], apresentando dela também um mapa [P. 112] e afirmando que era caminho perigoso que, de Piratininga, demandava o sertão, varando o Paranapanema, alcançando quase que as cabeceiras do Piqueri [Obs: rio Piquiri, no Estado do Paraná], dali rumbeando para Assunção, no Paraguai [In opus cit., Melhoramentos, 4ªed.; ano ?]. A obra referida é lindamente ilustrada pelo próprio autor. Belmonte é o conhecido apelido artístico de Benedito Carneiro Bastos Barreto, consumado desenhista e caricaturista, famoso pela criação do personagem “Juca Pato” e ilustrador de diversas revistas – como a Fon Fon – e livros, como obras de Monteiro Lobato. Não apurei a data da edição supra do seu livro. Em edição primitiva, parece que a obra foi apelada “História do bandeirantismo paulista”. Belmonte, nascido em 1896, faleceu em 1947. Ora, o roteiro que dá Belmonte, é justamente, pelo menos em parte, o tronco principal do sistema do Peabiru. No mapa que dele traça, o autor diz que se tratava da possível “trilha dos tupiniquins”, segundo um esboço que dela fizera Theodoro Sampaio. E nos recorda ele que ainda em 1604, soldados espanhóis, vindos por mar desde a Província de Guaíra, se dirigiram a São Paulo de Piratininga, a pleitear ali que se enviasse socorro por terra, por referida trilha indígena, ao povo de Vila Rica, situada no atual Estado do Paraná, nas cabeceiras do rio Ivaí, eis que os dali, muito isolados de Ciudad Real, passavam extrema necessidade para sua sobrevivência. E foram eles por mar porque Sua Majestade o rei de Portugal proibira o uso de referida trilha aos estrangeiros, sob pena de morte. E cita Belmonte, as seguintes palavras registradas na época: “... los portugueses es gente prohibida no consentiré se ande aquel camino hasta ver lo que Vuestra Magestad es servido se haga no emergente que los de Guairá lo desean mucho” [In opus cit., p. 114]. Diz ainda Belmonte que a presença de soldados espanhóis ali, na Vila de Piratininga, foi assinalada pela Câmara local, em sessão do dia 22.11.1603. Portanto, creio se deva corrigir o ano apontado por Belmonte: ao invés de ida para lá em 1604, terá sido a chegada deles em novembro de 1603. Em 1604, portanto, estariam ainda ali; e se o socorro foi por terra, pelo Peabiru, por ali também teriam talveza retornado os arrojados heróis de Castela. De fato, diz Belmonte, os paulistas, generosos, enviaram os socorros solicitados, porém, debatendo muito o assunto, pelo respeito reverencial à orderm do soberano e por temor à punição referida; isso não obstante o fato de que, em 1604, o Brasil já estava sob o poder do rei espanhol, o qual, de 1580 a 1640, foi senhor dos dois Reinos. Observo que, no litoral paulista, não apenas São Vicente e Cananéia são pontos que devam nos interessar como iniciais ou terminais dos peabirus. Peruíbe, por exemplo, será o mesmo que Peruípe, Peruype e, assim, Rio do Peru ou ainda Rio do Caminho do Peru [O “pe” sufixal pode ser partícula reforçativa de “y (rio), como pode significar caminho]; também de Santos se diz que saía o Peabiru, rumo ao Planalto de Piratininga. E as descobertas arqueológicas mais recentes devem ser devidamente consideradas; assim é que Carlos Fausto, no seu livro “Os Índios antes do Brasil” [Jorge Zahar Editor, Rio, 2000], nos demonstra como a construção de estradas era uma prática defensiva dos índios kuikuro, da Amazônia; realmente, de tal cultura é o sítio pré-histórico fortificado Kuhikugu, o qual apresenta duas valas defensivas cercando totalmente a aldeia; e partindo do centro desta, de modo eferente, esparramam-se quais os cinco dedos de uma mão humana, cinco estradas, largas, pertindo o rápido deslocamento de troços de guerreiros armados para fazer frentes a invasões eventuais. As estradas 1,2,3 e 4 demandam do centro às valas defensivas, evidenciando suas finalidades; a 5 ruma para um grande buritizal que contorna parcialmente o acampamento fortificado em questão. Após a mata, existem duas lagoas, a Lamakuka e a Kuhikugu, da qual a fortificação ganhou o nome. Os fossos defensivos são uma obra extraordinária para um povo tão sem tecnologias, pois possuem 10 m de largura por 1m a 3m de profundidade, isso numa imensa extensão de dois quilômetros em derredor das partes habitadas. Somente uma permanente ameaça, muito grande e grave, justificaria uma tal obra de engenharia.


6 . Tornando à questão da abertura do caminho e suas benfeitorias, não creio tenham sido construtores os incas. Fundamento-me em razões estruturais, arquitetônicas, pois os incas desenvolveram uma engenharia muito superior àquela empregada pelos que abriram o Peabiru. Fossem os incas – que são muito recentes na História – os seus abridores, não teriam deixado de fazer nele trechos pavimentados, escorados em certos trechos e com benfeitorias importantes, como pontes resistentes, capazes de duração indeterminada; e mesmo compridas na travessia de diversos rios menores. Por outro lado, se tal inferioridade estrutural do Caminho do Peabiru elimina, a meu ver, a possibilidade da sua origem no Império Inca, também isso elimina, outrossim, a possibilidade de que, durante o Império Inca, tal obra tivesse sido feita na direção Leste-Oeste, Atlântico-Pacífico porque, se assim o fosse, seus construtores teriam de qualquer modo de compactuar com o soberano inca a abertura de tal via imensa e a sua conexão com as estradas incas rumo ao litoral do Império, no Pacífico. E não há indícios de que isso tenha acontecido. Mesmo porque, ao que se sabe, as relações entre os incas e os índios de aquém dos Andes era conflitivo e tanto que os incas cuidavam de manter enormes fortalezas para se protegerem de invasões dos habitantes das selvas. Durante a invasão de Aleixo Garcia se pôde aquilatar em como havia animosidade dos tupi-guarani contra os incas e em como com pouco ou nenhum esforço Garcia os arregimentou no Brasil e no Paraguai para referida invasão contra aquele Império andino. Portanto, tudo isso considerado, acho mais provável que a construção do Peabiru ou tenha sido muito anterior à superveniência do Império Inca, mesmo se construído por gente andina mas de técnicas seguramente mais primitivas que as incaicas, ou ainda que seus construtores sejam, como as pesquisas arqueológicas o indicam, os nossos tapuias, não excluindo a hipótese de tenham sido os nossos sambaquianos; finalmente, a crer na narrativa indígena tupi-guarani – com certeza muito fantasiosa, distorcedora da realidade -, os autores não seriam nem incas, nem outros povos andinos, nem os índios brasileiros, mas outra gente, barbada e de pele branca e portadora de técnicas e de armamentos avançados, que teria vindo sobre as águas do mar até o nosso litoral utilizando transporte marítimo de certa rapidez e que, em dado momento, com seu líder Tumé partiu para não mais retornar.



O Peabiru foi descoberto assim: tendo os portugueses chegado ao Brasil na altura da Bahia, foram percorrendo o litoral rumo ao Sul. Nessa descida, viram caminhos que os índios tinham, mas que eram coisa modesta e improvisada e talvez mesmo apenas aproveitamento dos carreiros das antas, veados e outros bichos das matas e das beiradas das águas. Porém, chegados à região de São Vicente e em Cananéia, a situação mudou inteiramente. Ali descobriram um caminho bem ordenado, em forma de vala em V, recoberto de gramíneas para tornar a jornada mais fácil e, diz-se, para impedir-se à mata retomar o seu espaço. Esse caminho misterioso, descobriu-se aos poucos, subia pela serra rumo ao Planalto e adentrava firme pelas profundidades do sertão. Na largura de oito palmos – portanto cerca de 1,80 ms – e com profundidade de 0,40 cms, atravessava o continente, chegando aos Andes, onde ganhava a fisionomia de estrada empedrada. Dali seguia a Cuzco e de lá para a costa peruana. Descobriu-se, também, que além de seu caminho-tronco, possuía enorme quantidade de ramificações. Aliás, o conhecimento desse caminho ainda é tão precário, que mesmo não há segurança em afirmar-se que seu tronco era da Paulicéia aos Andes. O tronco principal poderia ser mesmo pelo litoral catarinense, via rio Itapocu aos Andes. De qualquer modo, obra grandiosíssima. Em alguns pontos do trajeto, como no Chaco, Pantanal e nos areais diversos, tinha o requinte de ser demarcado. Seu forro de grama e que o tinha em muitos trechos, diz-se, era adrede preparado para disseminação do caminho mediante as sementes que grudavam nos pés dos caminhantes e tinham as gramas a virtude de impedirem o avanço da mata. Esse, porém, é um aspecto a ser examinado e resolvido com o auxílio dos conhecimentos botânicos e mediante pesquisas de campo. O fato, porém, é que admirados os lusos indagaram dos selvícolas brasileiros – como os hispânicos, inclusive jesuítas, o fizeram aos índios do Paraguai – sobre quem fora o construtor de tal caminho, tendo eles lhes respondido que fora Tumé (que o português diz Sumé), um homem bondoso e de virtudes extraordinárias; e atribuindo eles ao caminho, diz-se, o nome Peabiru.



Adiante, trato bastante desse Tumé (ou Sumé, Zumé como grafam). Se isso for verdade, se ele é mesmo o autor, então teremos que supor que Tumé não viera com apenas um companheiro, como reza a lenda, mas teria que ter trazido com ele um grande grupo, porque o corpo principal do Caminho do Peabiru tem nada menos que 3.000 quilômetros e vai desde São Vicente, no Estado de São Paulo (ou de seu principal ramal, que é desde a Ilha de Santa Catarina e o Vale do Itapocu), passando por Paraná, Mato Grosso do Sul, Paraguai, Bolívia e findando no Peru, ligando os oceanos Atlântico e Pacífico. Uma estrada digna de um Marco Polo. Delírio de historiadores? Não, felizmente. O Peabiru foi desde os tempos coloniais visto e utilizado por aventureiros como Aleixo Garcia e seus companheiros (cerca de 1524), capitães e administradores como Cabeza de Vaca (1541); e muitos viajores e aventureiros, como sucedeu com Johann Ferdinando (1549), vindo de Assunção. Também entraram por ele a maioria dos companheiros de Hans Staden (1551); e Ulrich Schmidl (1553); e Pe. Leonardo Nunes (ano ?); e Pedro Correia e João de Souza (ano ?); e Juan de Salazar de Espinosa, Cipriano de Goés e Ruy Diaz Melgarejo (1556), contrariando o Governador Geral do Brasil anos antes; e Diogo Nunes (ano ?); e Braz Cubas e Luiz Martins (1562). Daí que em 1552 o Governador Geral do Brasil, Tomé de Souza, temendo que essas penetrações perigassem os interesses da Coroa lusa, mandou trancar o caminho da costa catarinense que ia ter a Assunção, no Rio da Prata, isto é, mandou fechar a foz do rio Itapocu. E o historiador Romário Martins, em cujo livro maior colhi na juventude formação e encantamento, diz que a costa catarinense era “um dos ramos da linha tronco do Peabiru” [in “História do Paraná”, Editora Guaíra Limitada, Curitiba, 3ª ed., pgs. 87 ss]. Outrossim, estando as margens do Peabiru ocupadas por diversos povos indígenas, foi usando tal caminho e a partir da Paulicéia que terríveis bandeirantes como Antonio Raposo Tavares e Manoel Preto desceram para o Sul, a atacá-los e escravizá-los, nessa atividade que foi sem dúvida o mais grave crime cometido contra povos americanos e que culminaria com a destruição das Missões pelo governo lusitano com apoio do hispânico. Em outros tempos, porém, os povos indígenas usavam o caminho para o bem e, como diz o cacique Werá Tupã, de Palhoça, SC, numa mensagem memorial: “nossos antepassados buscavam a Terra Sem Mal (Yvy Marã Eym), usando o Caminho do Peabiru”.




7 . Diversos autores antigos descreveram o Peabiru. Assim é que Ruy Díaz de Guzmán chama-o Peabeyú e dele diz como sendo um caminho bem marcado; e o Padre Antonio Ruiz de Montoya, grande e antigo amigo e estudioso dos índios, testigo vivo de suas andanças e feitos, autor festejado sobre a língua guarani, dá ele próprio seu testemunho de que viu um trecho de tal misterioso caminho nas bandas do Guaíra, o qual diz ter cerca de oito palmos de largura, o que equivale a cerca de 1,80 ms. Esse caminho gramado, no seu trecho principal, ia de São Vicente (ou de Cananéia, ou de ambos os lugares) no litoral paulista, até aos Andes, donde assumia a feição de estrada calçada até a Capital dos incas, Cuzco, e dali prosseguindo até ao litoral peruano, no Oceano Pacífico. Um caminho fantástico, sem ser no entanto uma fantasia. Era uma enormidade! Coisa de causar admiração! Mas real como o eram as famosas estradas incas pavimentadas dos Andes. Só que o Peabiru era pavimentado com gramas. Com pedras, só em trechos andinos. E haviam nele muitos ramais secundários, adentrando por Santa Catarina e Rio Grande do Sul, São Paulo e Paraná, Mato Grosso e Paraguai. Uma grande quantidade de municípios guarda seus vestígios e, quando não, a memória falada ou escrita da sua antiga presença ainda testemunhada pelos colonos brancos. 

Como disse, sobre o Peabiru há razoável literatura, antiga como recente, havendo a seu respeito relatos e comentários de autores dos primeiros anos da descoberta do Brasil, como os de Cabeza de Vaca e do seu piloto João Sanches, também Pedro Lozano, Ayala e Salcamayhua e passando por autores modernos como Romário Martins e Reinhard Maack e contemporâneos como Hernâni Donato e Luiz Galdino [Este in Peabiru: Os Incas no Brasil, Editora Estrada Real, B.Hte] e outros, muitos outros, tanto que me é impossível aqui relacioná-los, donde apenas exemplifico com o recente e ótimo livro de Rosana Bond, intitulado “A Saga de Aleixo Garcia” [Coedita, Rio, 2004] já em terceira edição, assim como seu livroo “Peru do império dos incas ao império da cocaína” [Coedita, Rio, 2004], como também os exemplares dessa muito oportuna publicação que dele sistematicamente tem tratado e que é intitulada “Cadernos da Ilha”, que foi editado em Florianópolis [Diretoria contactável pelos e-mails] e, que apresenta trabalhos dos estudiosos do Peabiru através os séculos, publicação essa que trata inclusive dos temas relacionados aos encontros e congressos nacionais e internacionais sobre o assunto, assim como do Pré-Projeto Turístico Caminho de Peabiru: o Compostela da América do Sul. Especialmente são importantes, para desenhar-se o papel do Vale do Itapocu como caminho peabiruano tradicional dos índios, os relatos a respeito de Aleixo Garcia e Cabeza de Vaca, eis que ambos fizeram o trajeto pelo Itapocu seguindo orientações específicas dos índios guaranis e isto restou historicamente comprovado por autores castelhanos e brasileiros. O assunto vai ganhando interessados amplamente. Assim é que Ignácio Arendt colheu e traduziu texto sobre o Peabiru, de autoria de Mieczyslaw Bohdan Lepecki, o qual, num livro em que existem vários autores, abordou o tema. Esse livro intitula-se “Emigracja polska w Brasylii – 100 lat osadnictwa”, tratando da emigração polonesa no Brasil, sendo publicado pela Zaklady graficzne TAMKA, Warszawa (Varsóvia), 1971. E diz o articulista que, reduzindo-se o ouro disponível no litoral, os lusos resolveram-se a explorar o Planalto Curitibano [Nota: O autor, preocupado com a ocupação polonesa no Paraná, confunde relatos relativos aos lusos na região de São Vicente e Cananéia; porisso, ao invés de mencionarem o Planalto de Piratininga, referem o Curitibano, só ocupado muito depois. Ademais, não foi o esgotar-se o ouro no litoral, mas a determinação lusa de ocupar a terra brasileira]. De fato, diz, tinham eles conhecimento, da parte dos carijós, de dois caminhos que, partindo do mar, permitiam tal subida e que por eles eram usados desde tempos imemoriais. Um desses, diz, saindo de São Vicente, atravessava todo o continente da América do Sul, juntando-se com trilhas do Império Inca. E essa trilha era apelada Peabiru e, posteriormente, Caminho de São Tomé, “porque os jesuítas incutiram-lhes que São Tomé veio para a América antes de Álvares Cabral, abriu esse caminho e ensinou o cultivo da mandioca e a utilização da erva. Esta versão dos jesuítas foi divulgada como verdadeira por diversas tribos indígenas, mudando o nome do santo à sua maneira”. E continua o autor dizendo que, em certo local, o caminho se repartia e que uma das ramificações se dirigia para o Sul, em direção ao curso do rio Iguaçu, atravessando-o na foz de Santo Antonio. Depois de mencionar que na ramificação sul passara o afamado Cabeza de Vaca, o autor, enfatizando a importância de tais caminhos para os europeus ao tempo da Conquista, fala também do segundo caminho e o qual, saindo de Paranaguá pelo rio Cubatão, também apelado Chundiaquara, passando por Porto Real (atual Morretes), daí ao Porto de Cima aos pés da Serra do Mar, dali seguia por estreita e perigosa trilha, plena de desfiladeiros e precipícios, até ao planalto, donde o acesso à região de Curitiba.

O Vale do Itapocu, assim como testemunha João Sanches, piloto de Cabeza de Vaca, tornou-se a via natural mais adequada para os europeus subirem a Serra do Mar. Não seria de causar admiração que o trecho itapocuense do Peabiru tivesse mais importância na Pré-história americana que os trechos que ligavam o litoral paulista ao hinterland brasileiro, porém, quanto ao Peabiru, ainda não existentes levantamentos arqueológicos e topográficos reconstituidores das respectivas ocupações marginais e movimentação humana. O só fato de o trecho paulista ter sido descoberto por primeiro não é título para se lhe atribuir mais importância que o Vale do Itapocu e mesmo que o litoral catarinense na sua generalidade. Não há registros suficientes sobre a utilização do caminho nem sequer nos tempos históricos, mas é sabido que o Vale do Itapocu foi importante via de penetração humana. Perguntados sobre um bom caminho para Assunção por terra a dentro, os tupi-guarani indicaram com segurança o Vale do Itapocu como via de acesso ao Planalto e ensinaram a ligação desse caminho com o trecho paranaense do Peabiru, de modo que nessa vivência indígena de uma busca da sua Terra Sem Mal, parece que o Vale do Itapocu e todo o litoral catarinense desempenharam um importantíssimo papel.

8 . Consideremos um pouco esse caminho do sertão, o Peabiru. Um caminho assim exige obrigatoriamente a existência de uma grande Nação envolvida na sua abertura e utilização. É inútil abrir e não usar. Não era coisa para dois homens, mesmo sendo bons mágicos. A lenda de Tumé narrada pelos tupinambás e tamoios indicam a chegada dele em nosso litoral e, portanto, supostamente seria a partir daí a construção do caminho, rumo aos Andes. Não dizem que ele viera das matas, mas que chegara pelo mar e flutuando sobre as águas. Contudo, para um caminho desses, a construção na direção inversa é que seria a esperada, isto é, que tivesse sido aberta em tempos pré-incáicos ou mesmo incáicos, por algum povo andino, porque lá, sim, houve grandes arquitetos e engenheiros e pelo menos os incas foram insuperáveis construtores de estradas, criando obras calçadas com pedras e com rochas protegidas lateralmente e por pedras escoradas, de tamanhos formidáveis e inclusive lançando pontes magníficas sobre majestosos rios. Todo o Império era ligado por estradas. Aliás, já se criou a hipótese de que o Peabiru é o Caminho da Terra Sem Mal e foi aberto pelos guaranis do Paraguai. Hipótese simpática, tirante o fato de que o guarani não parecia ter tal mentalidade de abrir caminhos vastos e complexos. Nem tinham o instrumental mínimo para isso. Também se teorizou que é obra dos incas. Estes, sim, tinham tecnologia para isso, mas não há provas dessa autoria também. Fala-se da possibilidade que o evangelista São Tomé tenha vindo ao Brasil catequizar os índios e então construíra o caminho, o que me soa como pura bobagem. Não esteve aqui, o caminho lhe seria uma inutilidade e lhe é anterior. A arqueologia brasileira, contudo, tem revelado que, surpreendentemente, nossos próprios índios – e, pasme-se, os índios jês, tidos como mais atrasados que os tupi-guaranis -, foram, estes sim, abridores de caminhos, embora não se os relacione ainda com o Peabiru. O arqueólogo Igor Chmyz, por exemplo, descobriu com sua equipe que os índios itararés, que apesar do nome a eles dado são do Grupo Jê (Tapuia), estes sim, vinham construindo caminhos muito bons e enormes, mas não eram forrados. Até o século XVIII esses caminhos eram por eles utilizados [Entrevista in Cadernos da Ilha, Florianópolis, nº 3, ano 2004, p. 20/23]. Quanto ao Peabiru a equipe de Igor Chmiz chegou a acompanhá-lo em largo e longo trecho, na mata e campos, por cerca de 30 quilômetros, na região de Campina da Lagoa, Paraná. Até atualmente não se sabe quem é o autor do caminho. Quanto aos incas, não há prova ainda de que estenderam seu domínio até lugares tão avançados do chão brasileiro. Sua técnica os faz candidatos sérios, mas os Andes conheceram outros grandes povos construtores. A nenhum imperador inca se atribuiu haver construído essa estrada até o Oceano Atlântico. A obra deve ser pré-incaica ou, se inca, vinda de um tempo em que esse povo ainda não era dominante nos Andes, ou seja, de um período anterior a Manco Capac, o fundador do seu Império.

9 . Vamos tratar agora da questão do revestimento do Peabiru com gramas, como a respeito se comenta e até porque, em Pitanga (Pr), diz-se, há trechos com vestígios delas, embora ainda dependente de se apurar se eram mesmo as gramas originais e a datação mais antiga da sua presença ali. Muitas descobertas novas tem ocorrido nesse sentido, de apurar-se a construção de estradas, caminhos largos e longos, inclusive na Amazônia. Nenhuma outra se achou, contudo, que como o Peabiru fosse calçado com gramíneas. Serão necessárias pesquisas arqueológicas para verificar se esse mato não é mera invasão nativa de capins mais ralos ou se efetivamente são gramíneas plantadas com o fito de formarem e manterem um caminho. Observo que esse costume de cobrir-se monumentos com gramíneas não é estranho à América. Os autores James Harpur e Jennifer Westwood no seu livro intitulado “Lugares Lendários” (No original “The Atlas of Legendary Places”), narram em como alguma tribo norte-americana do Ohio, no Distrito de Adams, edificou com terra em tempos desconhecidos, numa elevação a cavaleiro do Brush Creek, uma imensa serpente de terra e revestindo-a com grama, obra enorme, com largura de 6 ms e com mais de 300 ms de comprimento (a dimensão da Torre Eiffel) e lá está ela ainda, coleando com seus anéis e abocanhando um pequeno outeiro em formato de ovo ou talvez do Sol (poderia simbolizar um eclipse, sendo o Sol devorado). Fazendo-a ocupar todo o topo de uma pequena colina. A grama persistiu ali nela desde tempo muito recuado, embora impreciso. Os autores da obra são incertos. Sendo obra dos adenas, a antiguidade poderia ser grande, pois viveram ali de 1.000 a.C. (3.000 A.P.) até 100 a.C. (2.100 A.P.). Sendo dos hopewells, seria mais recente, pois ali viveram de 100 a.C. (2.100 A.P.) até 400 d.C. Aliás, na América do Norte é muito comum outeiros assim, com figuras de animais: ursos, búfalos, alces, aves e serpentes [in opus cit., Ediciones Prado, Madri, 1995, Vol. I, p. 110 ss]. Não há, pois, porque duvidar de que também o nosso Peabiru possa ter sido efetivamente recoberto de gramíneas selecionadas e que estas tenham se mantido, embora eu não creia que isso possa ter ocorrido por muitos milênios sem que a Mãe Natureza o retomasse para si e a seu modo. Não sei, todavia, por quanto tempo isso sucederia. A questão variará conforme as condições ambientais locais.

10 . Quanto ao tempo em que se deu a construção do Peabiru, como não há modo algum de datação baseada nos relatos testemunhais, exceto no sentido de que já existia quando da ocupação lusa e hispânica há cinco séculos, então a esperança é que arqueólogos ou botânicos possam fazê-lo, pesquisando os vestígios deixados no subsolo dessas misteriosas rotas. Como há forte possibilidade de que o nosso pré-histórico Tomé seja o mesmo Wakea da Nova Zelândia e do Havaí, mesmo que seja o famoso Huira Cocha dos Andes, ou Bochicha, a eventual datação da vida de um desses heróis do passado poderia facilitar a datação de Tomé ou Somé. A determinação da datação das espécies de gramíneas nele havidas em tempos remotos, pelo exame do subsolo, poderá estabelecer, além da época da edificação de tal caminho vasto, também, talvez o lugar origem da espécies botânicas nele empregadas. Os índios brasileiros não deixaram um testemunho de que viram Sumé nesse serviço de abrir tais caminhos. Se ele os tivesse aberto em sua presença, o veriam e o teriam dito, porque então permaneceria muito tempo com eles nessa obra. Muito provável, pois, que os índios inventaram uma lenda sobre um homem mágico e poderoso e o qual, com tais poderes sobrehumanos, abrira tais rotas e assim através de lendas teriam como explicar às gerações curiosas de indiozinhos o como eles, chegados no Brasil vindos de sua terra a Leste pelo Atlântico, teriam encontraram esse caminho já pronto para o uso. Achando eles os jês inferiores e incapazes de tal obra, desprezando eles àqueles selvícolas de técnicas inferiores e primitivas e estando o Leste brasileiro muito distante dos incas e de qualquer modo os tupi-guaranis antecedendo os tempos imperiais daqueles e talvez mesmo culturalmente – e sendo os próprios tupi-guaranis cientes de que seus ancestrais não eram os autores, restou-lhes apenas o recurso mítico, invocando os poderes mágicos para explicar o que não puderam entender. Na verdade, não podemos excluir que os autores do Peabiru tenham sido os jês ou ainda os desaparecidos povos sambaquianos do litoral brasileiro, ou ambos os grupos, se aparentados. O estudo comparativo de crânios de jês e de sambaquianos indicam um forte parentesco entre essas gentes. Para onde foi esse nosso povo litorâneo de toda parte? Dizimados pelos tupi-guaranis terão ido para o interior em busca dos seus parentes de Minas, São Paulo, Paraná e outras partes? Como a América do Sul é toda ela cercada de sambaquis, não é de se excluir peregrinações dos sambaquianos ou dos jês, de costa a costa, de oceano a oceano, com finalidade de intercâmbio tribal ou mesmo com finalidades religiosas, tal como veio a suceder com os tupi-guarani que o fizeram em relação à sua Terra Sem Mal. Isso implicaria em se estabelecer, porém, uma presença de nossos índios em terras andinas e particularmente no litoral do Pacífico ou, inversamente, vestígios de povos do Pacífico em terras brasileiras. Tudo no mundo das conjecturas e, nesse sentido, faço como o índio que, a seu modo – e na forma de lendas -, buscava explicações para o inexplicado.
 




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