quarta-feira, 6 de abril de 2011

YTAPECU, RIO CAMINHO ANTIGO


O autor do livro “Ytapecu, Rio Caminho Antigo” é o advogado José Alberto Barbosa, um promotor de justiça aposentado, residente há muitos anos na cidade de Jaraguá do Sul – SC. Grande amigo nosso, é também poeta, desenhista, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, e pesquisador da historia de toda a região do vale do rio Ytapocu, local de grande importância estratégica do Caminho do Peabiru, por ser exatamente onde o Caminho deixava o litoral de Santa Catarina e se embrenhava pelo sertão, seguindo seu fabuloso itinerário rumo à civilização Inca, na costa do Peru, já cerca do Oceano Pacifico.
Vamos postar apenas alguns trechos da substanciosa obra do doutor Barbosa, o que certamente vai acrescentar valiosos conhecimentos para queles que se interessam pela historia do fascinante Caminho do Peabiru.



O Adelantado Cabeza de Vaca sobe o rio Itapocu. Parte da
comitiva o faz em barcos leves. Vê-se ao fundo o Morro do
Jaraguá (Ofic. é o Morro da Boa Vista). Desenho a bico-de-
pena de José Alberto Barbosa [Jaraguá do Sul, 1989].



Em tempos históricos, o pioneiro nessa rota, lembrado assim por sua qualidade de chefe na expedição, foi, a serviço da Espanha, o português Aleixo Garcia – também chamado acastelhanadamente Alejo García – e o qual, aí por 1524, partindo da Ilha de Santa Catarina, subiu tal rio Itapocu, tendo por companheiros um punhado de europeus náufragos como ele, mas à frente de um numeroso grupo guerreiro de guaranís, que por aqui rumaram para a conquista de um misterioso reino nas altas montanhas, onde, diziam os índios, habitava um rei branco e barbudo, que usava vestes como os europeus e que tinha muito ouro e prata, do que os selvagens lhes deram mostras com seus guardados, porque já haviam estado em tal longínqua terra. Garcia, que pelo caminho aparentemente obteve consideráveis reforços, adentrando pelo Itapocu e de tal vale passando-se para o Planalto Catarinense e o Paranaense, levado pelos índios e seguindo pelo Caminho do Peabiru, desse modo chegou com os seus na Bolívia; e justamente na região das incrivelmente ricas minas de prata do Potosi, que logo se tornaram fabulosas; assim, Aleixo Garcia descobriu, antes de Pizarro, ao Império Inca, em pleno reinado de Huayna Capac e, enfrentando aos exércitos deste e seus aliados, conquistaram duas fortalezas e matando seus comandantes; perseguidos pelos incas, refluíram para o Paraguai, levando enorme tesouro; Aleixo Garcia ainda tem tempo de remeter para a Ilha de Santa Catarina uma amostra de tal fortuna, por um grupo de sua confiança, que levava índios escravizados e que fora buscar reforços e, todavia, sucumbe ele, no Paraguai, não sendo jamais encontrados seu corpo e dos companheiros; nem o rico tesouro que traziam consigo. Quando em 1541 o Adelantado espanhol D. Alvar Nuñez Cabeza de Vaca enviou uma comitiva chefiada por Pedro Dorantes (ou Dorandes), para que entrasse pelo rio Itapocu, a sondar da veracidade e possibilidade do que ouvira na Ilha de Santa Catarina como reflexos da entrada de Aleixo Garcia, ou seja, de que era possível, indo-se pelo Vale do Itapocu, chegar-se à região de Assunção, no Paraguai, então aquele seu feitor demorou-se mato adentro por catorze semanas, ou seja, um ano e dois meses, tornando após com a notícia dos índios de que o Vale do Itapocu era rota recomendada. Ora, é possível que, indagando ele dos caciques neste vale, lhe tenham dito aqueles e outros índios que fossem pelo Itapecu, isto é, pelo Rio que é Caminho Antigo. Foi em busca desse informe que ele e sua comitiva se embrenharam pelas matas. Também no planalto, se não o próprio Dorantes, o Cabeza de Vaca encontrou os tupi-guaranis dos caciques Anhiriri, Cipoiai e Tucanguaçu, com os quais muito bem se relacionou. E venho, pois, apresentar-lhes um rio e um vale – o Itapocu – e o qual, longe de ser apenas um bom caminho para o acesso dos lusos e espanhóis ao Planalto, foi verdadeiramente um dos grandes escoadouros da migração indígena a qual, varando os Planaltos Catarinense e Paranaense, teria tido nele talvez mesmo o seu principal caminho, inclusive também do mar para as terras altas, ao ponto de ser lembrado por seu próprio nome como um Rio Caminho Antigo – ou seja, o Y-tape-cu [cu, igual a cué e como apócope de cuera, isto é, o antigo, o que foi; sufixo indicativo de particípio passado] - ou, como avento aqui, ele terá sido mais que isso, pois terá sido mesmo, num passado já perdido na fumaça do tempo, o Rio Caminho dos Ancestrais, uma rota preferida ou quase obrigatória de muitos dos antigos guaranis do litoral para o planalto e deste para as praias atlânticas e, assim, seria algo como o Rio Caminho dos Antepassados; por isso, nessa ótica, não admiraria que ele, no antanho, tivesse sido mesmo apelado Ytapeypycué, isto é, Rio Caminho dos Ancestrais, termo que, por metaplasmos, resultaria em Ytapecu.


Assim é que, antes e depois da descoberta do Brasil, o Vale do Itapocu era um caminho importante. Dele se valeram os lusos, os espanhóis e outros, para entrarem para o sertão ou dele saírem. E tanto isso preocupou a Coroa lusa, que o Governador Geral Tomé de Souza trancou o caminho, proibindo o seu uso sob pena de morte, ameaça que, naquele tempo, era gravíssima e o trono o cumpria fielmente. O historiador Victor Emmendörfer Filho, no seu ótimo livro “A primeira história de Guaramirim” – obra que honrosamente prefaciei -, faz uma boa resenha desses fatos, quando Tomé de Souza, preocupado com a comunicação fácil dentre lusos e castelhanos através o Peabiru, fechou o caminho também em Santa Catarina, pois queria, de um lado, evitar o contrabando e, de outro, que os castelhanos se apossassem de terras lusitanas. Apenas setenta anos depois da proibição o caminho foi reaberto. Estava meio deteriorado, diz Emmendörfer Filho, porém, foi reativado e muito usado novamente desde então. Desde tempos pré-colombianos o Vale do Itapocu representou, para os indígenas, valiosa parte desse caminho, pelo qual subiam para o planalto ou dele desciam, eis que no trecho da planície litorânea, o rio é todo ou quase todo canoável até o sopé da Serra do Mar – onde hoje é a cidade de Corupá -, facilitando assim o transporte de mantimentos, mesmo que a maioria das pessoas seguissem a pé por caminho ribeirinho. Subiam pois eles, indo ao que hoje é o Extremo Oeste catarinense – onde as expedições européias antigas tiveram contato com tribos cujos nomes registraram - e também ao Mato Grosso, Paraná, Paraguai, Bolívia e – pasme-se – ao Império Inca no Peru e ao próprio Oceano Pacífico. Aliás, a própria linguística dos falares americanos primitivos já demonstra uma profunda e mútua influência entre os vocabulários tupi-guarani e quíchua, por exemplo. Que o Vale do Itapocu era habitado pelos índios disso não há dúvidas. Não me espantaria em nada se a ciência provasse que o Vale do Itapocu e o litoral catarinense fossem na realidade o tronco, o cerne mesmo do Caminho do Peabiru, visto que, mais que um caminho em território tupi, ele se desenha como um caminho guarani e particularmente carijó. Havia tribos aqui e tanto guaranis quanto sambaquianas e eram fixadas na Bacia do Itapocu. Vestígios disso a arqueologia já registrou. De fato, o Dr. Walter F. Piazza descreve sítios arqueológicos às margens do rio Piraí, afluente do Itapocu, quase na embocadura com este rio maior e sendo eles respectivamente um sítio da Fase Itapocu, de tradição ceramista tupi-guarani; outro, da Fase Piraí, de tradição ceramista e não tupi-guarani, mas com intrusão de tal cultura; e sítios da Fase Acaraí, estes últimos pré-cerâmicos, sambaquianos e com datações variando de 2.970 A.P. (970 a.C.) a 2.270 A.P. (270 a.C.) [Cf. Dados à arqueologia do Litoral Norte e do Planalto de Canoinhas in Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, Belém, 1974, vol. 5, p. 53 ss].


9 . Quantos povos dominaram esse rio, o Itapocu? Que nomes lhe deram no passado? Por seu nome, penso que o Vale do Itapocu foi um dos principais roteiros dos mais primitivos guaranis. Em tempos já recentes, quando por aqui seguiu em 1541 a comitiva de Cabeza de Vaca, que trouxe pelo vale centenas de homens, dentre soldados e índios, padres e diversos civís e mesmo senhoras, o comandante, segundo eu penso, fez grande parte seguir por barcos para isso por ele adrede preparados, mesmo em canoas cedidas por índios da foz do Itapocu com os quais se relacionaram e talvez, com bagagens, enquanto o grosso da tropa, inclusive a cavalaria espanhola e a maioria dos besteiros e arcabuzeiros, foram por terra até um trecho do rio, conduzidos pelos indígenas e, após o que, ganharam a serra e se destinaram ao Paraná. Talvez teve que agir assim, indo pela margem, a anterior expedição, por cerca de 1523 ou 1524, de Aleixo Garcia, visto que talvez fossem muito numerosos e faltassem canoas suficientes para a subida do rio até as suas cabeceiras ou outro ponto em que subiram a serra. O grupo humano que partiu da Ilha de Santa Catarina, deve ter sido considerável. Basta ver que apenas uma pequena parte desse contingente, que voltou pedindo reforços, foi capaz de retornar do sertão trazendo um numeroso grupo de escravos índios.


Tornemos, porém, ao tempo presente e vamos nos ater ao nosso rio tal qual o conhecemos historicamente e buscar na esfera da toponímia e etimologia possíveis resquícios demonstrativos dessa importância pré-histórica e histórica do Vale do Itapocu como ramal do Peabiru, senão mesmo o seu tronco, sua parte principal, visto que afirmar-se estar ele na direção de São Vicente foi mera contingência de ali ser descoberto por primeiro pelos lusos e visto que não há pesquisas suficientes por toda parte para afirmar-se sequer se havia algum trecho que fosse a sua coluna vertebral.


10 . Vamos, porém, a outras especulações minhas sobre o nome Itapocu, sempre localmente, porque o nome, em outras incidências no país, conduzirá a outros rumos. Como os objetivos do presente livro não recomenda se traga aqui tudo sobre o nome em tela, por primeiro esclareço aos interessados que busquem ter acesso ao meu outro trabalho “Referências e hipóteses sobre o nome Itapocu”, inserto no livreto Emílio Carlos Jourdan no seu centenário de falecimento [I.H.G.S.C., edição da Editora CP, Jaraguá do Sul, ano 2000, p. 25 usque 53], onde examino criticamente as hipóteses de terceiros que pude coletar e onde desenvolvo algumas dezenas de hipóteses minhas a respeito do termo e do topônimo. Na verdade tenho em preparo um livro no qual mais de uma centena de hipóteses são consideradas, na maioria delas rompendo com a antiquíssima versão dada por João Sanches, o piloto de Cabeza de Vaca, o qual afirmava provir o nome do radical Itá (pedra), mas o qual não fez qualquer aplicativo designativo de rio, água, correnteza (vide mais adiante). Para os termos Itapocu, Itapucu, Itapecu e Itapicu, variantes do nome do rio, criei diversas outras hipóteses e muitas delas considerando o I inicial como sendo realmente um Y e com o sentido de rio e chegando, desse modo, a significados mais completos e apropriados. Pois bem, depois de elaborar mais de uma centena de hipóteses sobre o nome Itapocu – a maioria delas ainda inédita – e de examinar as muitas que coletei e provindas de outros autores, eu vinha defendendo mas não de modo conclusivo – o que atualmente se me afigura impossível -, como mais provável uma minha interessante hipótese peabiruana do nome, ou seja, de que a expressão Itapocu na verdade provenha de Y (rio) + tape (caminho) + cu (apócope guaranítica de cuera = velho, antigo), ou seja, Itapecu, isto é, Rio (que é) Caminho Antigo, enfim, um rio que faz parte de um antigo caminho dos índios do litoral para o planalto e vice-versa, um rio que é parte do antigo Peabiru. Note-se que, entrando por ele e orientados pelos índios, os homens de Aleixo Garcia e depois os de Cabeza de Vaca foram dar no trecho paranaense do Peabiru, em região de campos nativos, vararam matas e rios e atravessaram o continente, tendo Garcia descoberto o Império Inca antes de francisco Pizarro [Leia-se a obra de Rosana Bond, v. Bibliografia].


Essa minha construção tem forte amparo linguístico e histórico. Observo que, de fato, no guaraní paraguaio, Padre Antonio Guasch, S.J., registrou Tapekue [Que devemos ler Tapekué] como sendo caminho antigo, intransitável, o que serve de apoio a minha hipótese [In Diccionario Castellano-Guaraní y Guaraní-Castellano, Ediciones Loyola, Assunção, 1980, p. 715]. Tapekue, no caso, é apócope guaranítica de Tapekuera, em que tape é caminho e kuera (ou cuera) significa velho, antigo. Caminho até intransitável de tanto antigo, diz-se no Paraguai. A apócope, aliás, é uma característica da fala guarani: ao invés de poranga, dizem porã; ao invés de pitanga, falam pitã, ao invés de cuera, cué e nada obsta que o seja apenas esse cu terminativo no topônimo em questão. Ora, como já observei antes, uma das grafias dadas para o nome do rio, provinda de Léonce Aubé [Notice, 1847], foi Itapecu, que, se não é deturpação por colonos, será com certeza preservação pelos ribeirinhos e que ele ouviu e registrou e que se adequa perfeitamente à minha referida versão. Também já observei que Robert Avé-Lallemant anotou essa pronúncia – Itapecu – no seu livro Viagem pelo Sul do Brasil no Ano de 1858 in verbis: “Na embocadura do Itapecu fizemos alta na areia deserta”, etc. E que van Lede menciona o nome também como sendo Itapecu. Há, portanto, excelente fundamentação em tal e muito presente e registrada variante do nome segundo o que parece ser a tradição ribeirinha. Todas essas referências a tal variante do nome são citadas por Auguste de Saint Hilaire no texto e em notas de pé de página no seu livro a que já me referi [V. Bibliogr.]. Aliás, de fato nunca me conformei com a versão – que é a mais antiga que conheço - de João Sanches, piloto de Cabeza de Vaca, o qual registrou, de sua entrada aqui em 1541, que o nome significava Pedra (Itá) Alta (pucu), como se pode ler em sua carta a Sua Majestade o Rei da Espanha, inserto no livro de Hans Staden intitulado “Duas Viagens ao Brasil” [EDUSP/Itatiaia, B.Hte, 1974, p. 15]. Embora etimologicamente seja versão muito correta, todavia aqui no vale jamais se identificou qualquer pedra que fosse alta ou comprida. Há perto de sua foz uma pequena queda, o Salto do Guamiranga, que obriga a retirar-se ali as canoas da água e passá-las por terra, mas não se atribuiu à cachoeira ou às pedras dela ou ao lugar o nome Itapucu. Fosse o caso, seria então de ser apelado o acidente com o nome Itu (Cachoeira) pucu (alta) e o que, por corruptela, formaria Itapucu num metaplasmo. É hipótese minha que não se é de excluir. O salto ali é apenas um encachoeirado e nunca foi relacionado pela tradição com o nome do rio. E Sanches fala em pedra, não em cachoeira. Outrossim, a arenosa formação de restinga de léguas que há na foz do Itapocu nunca mereceu, penso eu, o tratamento de itá (pedra). Claro que o nome do rio poderia provir dessa fenomenal restinga, num provável itapecu e sobre isso criei também muitas hipóteses, por exemplo, com o terminativo cu, ku significando língua, porque tal areão compacto é também uma língua separando o mar das águas das lagoas da Cruz e Barra Velha. A restinga toda é em si uma língua de areia. E nas partes onde o rio rompeu a barreira para entrar no mar, poderemos ter de cada lado uma ponta em língua (apyiku) e eventualmente estar aí a origem do nome do rio.


11 . Mas tornemos ao Salto do Guamiranga. Há de fato nele pedras sobressaindo no nível atual e normal de suas águas, mas o antigo canoeiro Calixto Domingos Borges, que esteve a serviço do colonizador Cel. Emilio Carlos Jourdan no início da ocupação do vale do Itapocu, dando muito depois testemunho de suas experiências no vale, afirmou que, nos tempos dos trabalhos com Jourdan, o rio tinha bem mais volume e que o referido salto possuía então dois metros e meio, depoimento esse que é registrado pelo historiador Emílio da Silva no seu livro “Jaraguá do Sul – Um Capítulo na Povoação do Vale do Itapocu”. Realmente, disse Calixto, que o Salto do Guamiranga era temeroso para os barqueiros, mas que ao tempo do seu depoimento o rio minguara para um equivalente a três quintos do seu antigo volume. [In opus cit., Jaraguá do Sul, Edição do Autor, 1975, p. 38/39, com uma reedição posterior]. Aliás, o Sr. Ronaldo Klitzke, como Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Itapocu, em julho de 2005, sendo entrevistado pelo jornal A Notícia, afirmou que “Há 25 anos o rio Itapocu tinha 50 centímetros a mais de água do que hoje, possivelmente por causa da devastação da beira do rio e excesso de população que quadruplicou de lá para cá” [In A Notícia, AN-Jaraguá, 26/07/05]. Ou seja, em torno de 1980, o rio era meio metro mais volumoso e talvez a extinção da mata ciliar pelos colonos tenha sido responsável por tal efeito de desiquilíbrio das águas. De qualquer modo, é confirmado que desse modo, no antanho essas pedras do salto, no curso das águas do rio e sendo as águas mais elevadas, seriam tais rochas menos visíveis que atualmente, exceto, é claro, quando das poucas chuvas, tempo em que a estiagem as poderia fazer mais expostas que de costume. Todavia, Calixto fala também haver ali, a cavaleiro do salto, “uma bela chapada de rocha à margem esquerda do volumoso rio”; e tão larga que eles, viajantes, pernoitaram sobre ela [In Opus ref., p. cit.]. Tratava-se, então, de uma pedra alta, acima das águas e à margem delas. É a única pedra alta de que tenho notícia, mas não creio tenha tido tal importância ao ponto de nominar o rio. Seria mais lógico, então, dizer-se Rio da Cachoeira Alta [Itupucuy], não Pedra Alta [Itapucu], porque tal pedra existente não influía sequer no tráfego das canoas. O encachoeirado do Guamiranga, esse sim então impressionaria mais, mas apenas em razão de dificultar ele a canoagem, porque o local nada mais é que um rápido. Digo isso com certeza porque fui ao local especialmente para avaliá-lo, isto há vários anos. Ademais, se fosse certa a versão de João Sanches, seria necessário grafar Itapucuy, com o y final designando rio (o que ele não fez) e teríamos, então, só aí, um Rio da Pedra Alta, ou mesmo um Rio da Pedra Comprida. Apenas que não há pedra ou monte se candidatando a ser essa contida na versão. Existe na região, rente a Barra Velha, um moro apelado Morro Grande. Na verdade é minúsculo se comparado com a enormidade do nosso Morro da Boa Vista [dito do Jaraguá] visível lá daquela cidade litorânea. Considere-se ademais que pucu em tupi-guarani também significa comprido e poderia estar aí a solução do nome e, de fato, já desenvolvi e publiquei diversas hipóteses utilizando tal termo, mas não para pedra e sim para a enormidade do caminho do Peabiru ou, sendo o caso, para a grande extensão da língua de areia que compõe a foz do rio em apreço.

12 . Porém, olhemos para os astros! E façâmo-lo à noite! Vamos topar com um Rio Antigo no firmamento! E isso porque, até aqui, como que um preâmbulo. Tudo isso e muito mais se presta a especulações que já fiz e em grande parte publiquei. E não me conformando com a versão de João Sanches, busquei soluções alternativas, utilizando um Y inicial para designar rio, chegando primeiramente a dezenas de hipóteses e, depois, ao resultado retro, formador da tradução por Rio Caminho Antigo (Ytapecu, Ytapecué), a meu ver um nome muito apropriado para o historicamente mais importante e perlustrado ramal do Peabiru, ou mesmo seu cerne, porque mais utilizado que o próprio caminho maior de São Vicente ao sertão. Todavia, importa que pensemos a mitologia tupi-guarani; é imperioso que olhemos para os astros! É que, na astronomia mítica dos guaranis, a constelação da Via Lactea recebe a denominação de Tapecué, isto é, traduzindo-se literalmente, ela é um Caminho Antigo; pois em tupi-guarani tape é caminho e cué significa velho, antigo; e, com relação a caminho terrestre, humano, mesmo sendo ele já até intransitável. Até hoje, no Paraguai e nas bandas brasileiras do oeste do Mato Grosso, onde se fala ainda o guarani algo preservado, o termo tapecué se traduz por caminho velho. Ora, uma apócope do nome Tapecué iria produzir justamente Tapecu, com igual significado; ora, prefixando-se com um Y (rio, água), teríamos um Ytapecu; e o qual seria, nesse caso, um Rio do Caminho Antigo ou, no ver do índio, mais precisamente o que corresponderia, nos astros, ao Rio da Via Lactea. Verdade que para os povos tupi-guaranis o normal, consta-me, é que tal constelação fosse apelada Tapiirapé [O mesmo que Tapirapé; ou Tapi`i rapé], isto é, Caminho da Anta e, todavia, obtive de duas fontes a informação de que dentre os guaranis, Tapecué fosse forma corrente para tal significação. Desse modo, podemos ver que tanto os índios tinham na anta um animal totem, como, numa convergência cultural com gregos e romanos, viam, nos céus, no que para os romanos era um Caminho de Leite – Via Lactea -, já aqui um caminho da anta, um dos seus muitos animais sagrados. Na verdade os índios viam, no céu, reproduzido e tudo e todos que existissem também na terra.

Observo, porém, que o nome Tapecué dado à Via Lactea possa ser traduzido de modo diferente. Li isso, pela primeira vez, no livro “Parábolas da Terra Sem Males”, de Adolpho Mariano da Costa. Eu jamais tinha lido tal coisa, porque sempre soube que os índios apelam Tapirapé (Caminho da Anta) àquela constelação. Bom saber que existe um outro termo para designá-la. Verdade que, em primeira opinião, contrariando aquele autor, que interpreta o termo como “Caminho percorrido”, entendo se deva traduzir tal nome por Caminho Antigo, Caminho Velho; e isso porque justamente, em outras plagas e talvez mesmo no Sul brasileiro, tal constelação seja apelada Tapiirapé, isto é, caminho da anta. Isto é, a imagem central é a de um caminho pelo qual percorre uma anta, um animal totem. Porém, veja-se que se formos traduzir Tapecué por Caminho Antigo, estaremos desprezando a menção expressa do termo tapir ou tapi`i designativo da anta, o animal sagrado e totemizado. Então, coloco como hipótese secundária que o nome Tapecué possa ser, realmente, uma mera corruptela de Tapi`i (Anta) + cué (velha). Isso, porém, não parece corresponder à realidade estelar da visão do nosso índio, que haveria de enxergar, creio, naquela vasta, imensa mancha branca resplandecente no céu, naquela grandiosa, esplendorosa constelação dominadora da abóbada celeste, mais do que apenas a imagem de uma anta, pois, por mais sagrada que fosse, ela não haveria de compor todo e tal grandioso conjunto; já a visão de um enorme caminho luminoso, de um vasto Peabiru pendurado no firmamento, aí sim, haveria acerto na visão do índio; e mesmo se requereria que a anta estivesse perto, ao lado da grande mancha branca celeste, sendo esta, então, realmente o caminho do sagrado bicho; e sagrado, é claro, por garantir o sustento de tantos, do mesmo que na Europa primitiva os humanos cultuavam os ursos, os gamos, a fauna que assegurava a sobrevivência das tribos. Aliás, foi imensa a convergência de ideação e ótica dentre os tupi-guaranis e os europeus os gregos e romanos e outros povos antigos, em termos de modo de interpretar o céu. À nossa constelação do Corvo (Corvus), apelaram Urubu; à Constelação do Touro (Taurus), denominaram Tapiíra Raiuba [O mesmo que Tapi`i raim ykã ou Tapi`i raim nhykã], isto é, Queixada de Anta; ao conjunto estelar da Lebre (Lepus), apelaram Tapiti, isto é, a mesma lebre; na falta de ursos nos tempos recentes da América do Sul, passaram a ver, na constelação da Ursa dos europeus, a imagem de um Jaguareté, isto é, de uma onça pintada; a um caranguejo da constelação do Câncer, opuseram a visão de um Poti, isto é, camarão. E no céu, onde os europeus viam um comprido Escorpião (Escorpio), os índios viam uma Mboiaçu, isto é, uma Cobra Grande; noutras regiões sulinas, ainda é da anta que os guaranis se lembram, apelando a uma constelação de Tapi`i rapé rakã, e a respeito do que Robert A. Dooley, no seu ótimo “Vocabulário do Guarani”, observa que talvez seja um nome dado justamente à constelação do Escorpião; põe, todavia, ao lado da observação um sinal interrogativo.


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