quarta-feira, 6 de julho de 2011

HISTÓRIA DO CAMINHO DE PEABIRU

 A partir de agora estaremos postando trechos do livro “História do Caminho de Peabiru”, obra da escritora e jornalista Rosana Bond, uma das vozes mais ouvidas nas pesquisas sobre o fascinante Caminho de Peabiru, alvo de estudos e pesquisas de antropologos, arqueologos e historiadores do Brasil e vários outros países interessados na recuperação e conservação de trechos desse Caminho pre-colombiano de 4 mil km. por onde se movimentavam nações indigenas predecessoras da atual civilização.

Rosana Bond nasceu em 1954 em Curitiba e criou-se em Londrina - Pr onde iniciou sua carreira de jornalisa. Trabalhou em vários órgãos da imprensa brasileira, como Folha de Londrina, O Estado de São Paulo, Tribuna da Bahia, Jornal de Brasília, e TV Catarinense.
Tem 14 livros publicados, entre eles “Nicarágua – A bala na agulha”, “A civilização Inca”, “Sendero Luminoso – Fogo nos Andes”, “A saga de Aleixo Garcia”, “Peru – Do Imperio dos Incas ao Imperio da Cocaina”. Rosana também é escritora de obras infanto-juvenis, e é tida como nome de peso no segmento escolar brasileiro. É membro do Instituto Histórico e Geografico de São Paulo, e reside atualmete em Florianopolis - SC.

Para os interessados em adquirir o livro “História do Caminho de Peabiru” dirigir-se à Edirora Aimberê e Jornal a Nova Demecracia. Fones: (21) 2256 6303 e 2547 9385. site: www.anovademocracia.com.br e-mail: anovademocracia@uol.com.br / comercial@anovademocracia.com.br . Em Santa Catarina pelo telefone: (48) 3335 0150.



HISTÓRIA DO CAMINHO DE PEABIRU








Pelos caminhos dos outros

Depois de sair da Amazônia, estando 500 anos no Paraguai, chegou um momento em que parcelas dos guaranis começaram a andar para leste.
(Obs: Esses movimentos, registrados em tribos sul-americanas, não seriam migrações e sim “expansões”, já que não envolviam o abandono do velho território, conforme diz Noelli no artigo The tupi: explaining origin and expansions in terms of archaeology and of historical linguistics, de 1998).
As caminhadas guaranis sucessivas, em levas, no sentido Paraguai-Brasil, parecem ter se dado por várias rotas, existindo 3 mais destacadas, que depois receberiam desses índios o nome de Peabiru: pelo rio Ivaí, rio Piquiri e rio Uruguai.
As andanças devem ter se iniciado antes de 50 d.C., pois nesta data eles já estariam alcançando o Mato Grosso do Sul, o interior do Paraná e o oeste de Santa Catarina.
(Obs: No oeste catarinense Walter Piazza anotou uma datação muito recuada, de 70 a.C., na obra Santa Catarina: Sua história. Mesmo que se trate de um equívoco, a Arqueologia não descarta uma presença guarani bastante antiga naquela região).
Pouco mais tarde, em 150 d.C., estariam no interior do Rio Grande do Sul, tendo passado antes pela Argentina (Corrientes e Misiones). Em São Paulo é provável que estivessem presentes muito antes de 950 d.C.
A expansão/migração rumo ao Atlântico foi bem vagarosa, porém constante. Os estudiosos dizem que ao chegarem na costa do Rio Grande do Sul, esses índios teriam subido paulatinamente pelo litoral, até S. Paulo. No entanto, as datações ainda não confirmam isso totalmente.
Subindo desde as praias gaúchas ou vindos pelo interior, os guaranis alcançaram a litoral de Santa Catarina talvez em 450 d.C.
Hoje se informa que tal fato aconteceu bem mais tarde, por volta do ano 1000 ou 1050 d.C. Porém a própria Arqueologia acha que a ocupação guarani das praias catarinenses deve ser mais antiga, prevendo a descoberta de sítios de 450 d.C.      
Todas as datações que acabamos de apresentar foram baseadas em Noelli, Schmitz, Piazza e Masi. E são aproximadas, pois ainda faltam pesquisas nesse campo. Algumas datas foram constatadas em sítios arqueológicos e outras são previsões feitas pelos arqueólogos.
Muito bem, vamos agora a um outro ponto,a uma pergunta fundamental: nessa migração/expansão do Paraguai ao Atlântico, os guaranis já encontraram um caminho pronto, aberto?
É possível imaginar, sim, que vários trechos de caminhos nesse trajeto, já existiam naquela época.
Pois diversos povos indígenas já ocupavam o Mato Grosso do Sul, Rio Grande, Santa Catarina, Paraná e São Paulo milênios ou séculos antes da passagem dos guaranis.
Essas outras tribos transitavam por esses territórios, deviam ter suas trilhas, inclusive algumas para o litoral, visto que pelo menos 2 grupos (os sambaquieiros e os itararés) vieram do interior para as praias atlânticas. 
Vejamos alguns exemplos:

Tradição umbu – Em SP,PR, SC e RS, de 10.000 a.C. até 1000 d.C., não-litorâneos, chamados de “caçadores dos campos”, de alta mobilidade (portanto usuários de caminhos).

Tradição humaitá – Nos mesmos estados, de 7000 a.C. até 950 d.C., não litorâneos.

Sambaquieiros – Do Rio de Janeiro a Torres (RS), de 5000 a.C. até 1 AD, habitantes dos concheiros ou sambaquis, migração do interior ao litoral. Sambaquieiros fluviais do Ribeira do Iguape (SP), 8000 a.C.

Tradição itararé ou taquara – Em SP, PR, SC e RS, de 800 a.C. até 900 d.C., migração do interior ao litoral, pioneiros ceramistas.

Esclarecemos que utilizamos essa classificação por “Tradições” apenas por serem mais conhecidas.
Tal nome e divisão de povos vieram do PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas), executado entre 1965 e 1970. Mas alguns arqueólogos atuais vêm questionando os trabalhos feitos pelo Programa.
Dentre eles está Francisco Noelli, que no artigo Repensando os rótulos e a história dos Jê no sul do Brasil a partir de uma interpretação interdisciplinar, de 1999 afirmou:

(...)Se considerarmos as idéias e fatos produzidos no ambiente americanista desde o século XIX, somos obrigados a considerar que os pressupostos, hipóteses e interpretações pronapianas conceberam um cenário falseado e estanque em relação à América do Sul.
(...)Isto é, enquanto americanistas de diferentes disciplinas, movidos por distintas orientações teóricas, debatiam e construíam um modelo para os Jê e os Macro-Jê, os pronapianos iam ‘reinventando a roda’ sem nenhuma conexão com as demais descobertas de etnólogos, linguistas, geneticistas, historiadores e outros cientistas”.

O PRONAPA foi dirigido pela arqueóloga estadunidense Betty Meggers e seu marido Clifford Evans.
Além das críticas científicas, surgiram também acusações de outro tipo. Houve quem lembrasse que os pronapianos contaram com o incentivo da ditadura militar brasileira e o casal foi apontado como ligado à CIA, agência de espionagem dos USA.
Essa informação foi dada em 1992 por Anna Roosevelt, arqueóloga da Universidade de Illinois e bisneta do ex-presidente Theodore Roosevelt. Anna afirmou que Meggers/Evans tinham outros interesses no Brasil, além da pura investigação científica. Mais tarde, ela esclareceu que o casal tinha pertencido à OSS (Departamento de Serviços Estratégicos), que deu origem à CIA.  

Um “correio” engenhoso

Embora os guaranis provavelmente tenham usado, desde suas primeiras migrações do Paraguai ao leste, caminhos que já existiam, eles também foram “construtores”.
Essa construção foi registrada inclusive em sua mitologia, onde contam que o deus Nhanderu Guaçu veio ao leste “ por uma trilha aberta na selva...(veio) rompendo galhos e folhagens para que houvesse uma trilha”, disse Miguel A. Bartolomé em Chamanismo y religión entre los Ava Katu Ete.
Na verdade os guaranis não só abriram vias, mas passaram também a reverenciar as caminhadas e os caminhos (tanto os terrestres quanto os celestes e espirituais), como veremos adiante.
Implantaram uma ampla rede viária no sul/sudeste do Brasil, sem falar do Paraguai.
Segundo Noelli, foram milhares de quilômetros unindo aldeias, roçados, locais religiosos, etc, possibilitando uma notável intercomunicação, que muito ajudou a preservação de sua cultura. 

Regiões cobertas por extensas coberturas selváticas eram entrecortadas por milhares de quilômetros de caminhos entre aldeias vizinhas ou distantes, e entre as aldeias e suas diversas áreas de atividades econômicas, como roças, pesqueiros, portos, lugares de coleta, aldeias abandonadas, fontes de matéria prima lítica e argilosa; e de atividades diversas, cemitérios e locais ritualísticos.
(...)As redes regionais e a estrutura política e social de alianças, sustentadas por um intercâmbio permanente, explica a reprodução constante da cultura material e outros aspectos do ñande reko (“nosso sistema”) Guarani.”

Esses intercâmbios entre as aldeias guaranis, por meio da sua rede de caminhos, eram realmente intensos.
E nisso a tribo alcançou tal grau de engenhosidade que teria chegado a adotar uma “escrita” peculiar, implantando ainda um eficientíssimo sistema de  “correio” que nada ficou a dever aos famosos chaskis dos incas.
Foi o que afirmou o cientista suíço Moisés Bertoni, que viveu no Paraguai:

Os guaranis tinham e ainda têm, uma espécie de quipus (Obs: Cordas com nós, usadas pelos incas como meios de registro e mensagem, com cada nó significando números, palavras e até frases inteiras), que podem ser considerados como um verdadeiro alfabeto em que cada objeto, atuando como símbolo, representa uma palavra, uma idéia, como sucedia com os símbolos do chinês, especialmente o antigo.
Como bem se sabe, no (idioma)chinês o alfaberto não é como o europeu, já há nele um símbolo para cada palavra.
Pois entre os guaranis não é com um símbolo que se indica uma palavra, eventualmente uma frase, mas sim com um pequeno objeto. Este pequeno objeto é uma semente, uma pedrinha, um grão qualquer, um dente, um fragmento, um pedaço de fibra, é qualquer coisa, mas tem um significado distinto e preciso.
Quando os guaranis querem transmitir seus pensamentos, notícias ou avisos a outros guaranis, ou também a outra tribo, enviam por meio de um mensageiro e envolvido em uma pele ou uma bolsinha, um grande número desses pequenos e variados objetos.
A pessoa que recebe abre-o, como eu vi fazerem diante de mim, e imediatamente reconstroi, digamos, o ‘telegrama’, a comunicação ‘escrita’ dessa forma tão estranha.
Isso ocorre e é executado com a maior rapidez, que verdadeiramente me deixou assombrado, locomovendo-se o mensageiro de um ponto a outro em muito pouco tempo. E aquele que recebe traduz o significado desses objetos sem que caiba a menor dúvida.
Essa espécie de alfabeto deve ser bastante rico, porque em algumas ocasiões vi bolsinhas que continham centenas de peças diferentes”.

Sobre os mensageiros, disse Bertoni:

Há indivíduos que geralmente são encarregados de levar essas correspondências, se estão indo de uma aldeia à outra ou à residência da comissão central dos anciãos, ou do cacique principal.
O indivíduo que as leva, se é pessoa que faz especialmente esse serviço, por ser o mais andarilho ou por saber locomover-se com mais facilidade de um ponto a outro, é chamado de parejára ou parehára.
(...)Os guaranis tinham um correio perfeitamente organizado entre todas as aldeias, e ainda o têm, mesmo que seguramente esteja menos ativo. Quando os europeus ocuparam o Brasil viram que todas as nações de guaranis se comunicavam com suma facilidade entre elas. Por isso um dos primeiros descobridores escreveu que (o guarani) era o povo que mais viajava na América do Sul”.

O pesquisador paraguaio Juan Manuel Prieto, ex-assessor do Ministério do Turismo daquele país, que dedicou ao Peabiru sua saúde e seus últimos anos de vida (faleceu devido a problemas cardíacos, em 2006, em Assunção, entre duas viagens de estudos peabiruanos de campo)confirmou a existência dos mensageiros.
Fez isso num artigo não-publicado, Tape Aviru ou caminho de Santo Tomé, que generosamente me presenteou em 2004:

Este caminho (Peabiru), composto de um traçado troncal com diversas ramificações, seria a rota transitada em busca da Terra Sem Mal, porém seria também utilizado pelos parehara e os chasquis para transmitir notícias e estabelecer um sistema de alianças”.

Como se vê, trechos do Peabiru também serviram ao correio guarani.
Passados quase 100 anos desde que Bertoni viu tal correio funcionando, ainda hoje antropólogos observam que esse povo preserva hábitos um tanto parecidos com aqueles intercâmbios de notícias.
É o que conta Flávia de Mello em sua tese de doutorado :

(As caminhadas/deslocamentos entre as aldeias) propiciam um amplo sistema de troca de informações, notícias sobre as aldeias distantes, conselhos de conduta e resolução de problemas com os grupos envolventes, troca de sementes, víveres e artesanato, sementes sagradas, curadores (pajés) e seus pacientes, enfim, os bens e os saberes que circulam nas redes que unem as aldeias Guarani”.

Por outro lado, segundo complementou Bertoni, os guaranis alcançaram tal sofisticação que teriam criado “centros de comunicação”, os parehá ou parejá, que eram locais específicos para depositar e distribuir as mensagens, como faz o correio moderno.

O lugar onde se depositava (a mensagem) ou se entregava a outro encarregado da correspondência chamava-se parejaba ou pareháva, ou simplesmente parehá.
(...)Havia e creio que ainda há tais depósitos do correio ou lugares de troca de mensageiros.
(...)Os caminhos tinham centros (de comunicação) onde se cruzavam, em um lugar bem escolhido, como o cume de um monte, ou uma gruta, um lugar qualquer onde se pudesse depositar as correspondências.
Dessa maneira se facilitava grandemente a comunicação.
Por exemplo, para valer-me de um caso que permaneceu até os últimos séculos, o correio que descia do Guairá ou Mato Grosso não tinha necessidade de levar as correspondências até o Alto Uruguai (ao sul), mas sim as deixava numa paragem a meio caminho.
E o correio que vinha do sul pelo Alto Paraná, as recolhia em uma ilhota muito conhecida, chamada Parejá ou Parehá, ali deixando a correspondência que trazia do sul.
Fatos semelhantes, que ocorreram em tempo muito recente e é de nossa recordação, vêm provar que esse sistema de escritura e mensagem por meio desses pequenos objetos, se não era perfeito era engenhoso e eficaz, muito mais se o comparamos ao desenvolvimento daqueles tempos”.
 
Bertoni acreditava que existia um código para decifrar o significado de cada objeto e que este era conhecido em todas as áreas guaranis, inclusive no litoral brasileiro:

Evidentemente (para que o correio fosse eficiente) era necessário que o mesmo objeto tivesse um valor absolutamente determinado e conhecido por todas as nações guaranis, (então) não duvido que a convenção abarcasse o sul, o centro, o oeste, a costa do Atlântico e o Amazonas.
(...) É o caso de notar que nem o povo inca possuía meios de comunicação postal mais perfeitos”.

A ilha de Parehá, que fica no rio Paraná, cerca de 80 km abaixo de Ciudad del Leste e Foz de Iguaçu, próxima à pequena cidade paraguaia de Mayor Otaño, parece não ter sido realmente o único “centro de comunicação” dos guaranis, como pensava Bertoni.
Sem conhecer nada do cientista suíço, muito menos seus relatos e obras, Karai Tataendy (Adão Antunes), da aldeia Morro dos Cavalos, SC, descreveu algo semelhante em seu livro Palavras do Xeramõi.
Segundo ele, seu falecido avô contava que em tempos antigos os guaranis tinham possuído um local onde trocavam informações, numa praia do Atlântico que ele não soube identificar.

Contava meu avô que existia um lugar na beira do mar que era um centro de comunicação dos (guaranis) que viajavam de Sul a Norte e de Norte a Sul para visitar parentes.
Os Guarani tinham esse lugar como um centro de informações de todas as aldeias de Guarani do continente.
Essa aldeia nunca era abandonada, e ninguém morava muito tempo nela, porque era somente um lugar de repouso, encontro de confraternização e referência, de passagem.
(...)Os Guarani que vinham do Norte para ir para o Sul paravam nesse lugar para descansar, cantar (Obs: Fazer rituais) e conversar”.


Rosana Bond





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