sexta-feira, 27 de maio de 2011

ITAPOCU E PEABIRU (parte 04)

Com a postagem da parte 04 estamos encerrando uma participação importante do amigo José Alberto Barbosa, de Jaragua do Sul - SC. O trabalho até agora publicado é uma parte que se refere ao Caminho do Peabiru dentro do livro Ytapecu - Rio Caminho Antigo, de autoria do citado José Alberto Barbosa. Possiveis interessados em ler a obra completa podem entrar em contato com cadernosdailha@yahoo.com.br .




 
Aqui visitou-me o Pe. João Alfredo Rohr, S.J., depois de trocarmos cartas quando eu era promotor de justiça. A seguir fui visitá-lo no seu Museu do Homem do Sambaqui, cujas portas e coleções ele abriu-me com gosto. Eu tinha lhe enviado notícia de uma itacoatiara desconhecida por ele em uma ilha perto da Ilha de Santa Catarina, creio que a Ilha das Aranhas. Visitando-me na Promotoria de Justiça em Jaraguá do Sul, Pe. João Alfredo Rohr, S.J., o afamado arqueólogo, manteve comigo longa conversa. Andava por aqui em busca de cavernas; estava à cata de bons sítios para pesquisa. Sua morte veio a tolher sua iniciativa, porém, a retomada das pesquisas no Vale do Itapocu – que, creio, se cingiram aos sítios perto da faz -, é algo de imperioso, até porque notícias de concheiros encontráveis na planície na região de Guaramirim – disse-me o engenheiro florestal Dr. Ingo Robl – induzem a presença de sambaquis muito afastados da posição atual do oceano.


Embora eu, pessoalmente, imagine que no Vale do Itapocu, em função da bondade das águas do rio principal, sendo a canoagem fácil, menos necessidade havia para trilhas, caminhos terrestres, a verdade é que poderia havê-las, sim. De todo modo, Cabeza de Vaca, ao subir o Itapocu, levando grande comitiva de arcabuzeiros e inclusive vinte e seis cavalos, necessitaria evidentemente de que parte dela – especialmente os ditos animais – viessem por terra, com os seus cavaleiros. Isso pertence, ainda, ao mundo de minas cogitações. Aliás, interessante notar que, numa morada sita no Garibaldi, em Jaraguá do Sul [E a narrativa, que me recorde, é de Elder Stringari, esposo de minha sobrinha Kathia], achou-se, no começo da colonização ali, uma barra de ferro que recordava uma espada. Estava enterrada muito profundamente no solo. Causou verdadeiro espanto dentre os colonos. O informante não soube dizer o destino da peça; parece, ficou ali, largada pela roça. Cogito, porém, da forte possibilidade de que fosse uma lâmina de espada espanhola, a exemplo daquelele copo de espada – aparentemente castelhana - encontrado no Campo do Tenente, no Paraná, sendo preservada no Museu Davi Carneiro. De todo modo, não são estranhas as referências a antigos caminhos no Vale do Itapocu. Há notícias de estrada na mata, inexplicável, no município de Guaramirim. Também em Barra Velha, que tem a sede sita perto da foz do Itapocu e mesmo sendo local de sua foz antiga, há relatos similares; e a Prefeitura Municipal de lá tem se interessado em explorar o tema peabiruano para fins turísticos e foi mesmo ali recentemente criado o Parque Caminho do Peabiru, o que é de todo louvável. Foi decidida a colocação de 280 placas indicativas. A iniciativa, inclusive, para minha alegria, partiu de meu colega promotor de justiça, que tomou as medidas necessárias para tal implantação perante a muncipalidade; breve notícia, acompanhada de foto, que colhi no artigo de Osni Alves, “Placas Indicativas no Parque Peabiru” [Correio do Povo, Jaraguá do Sul, 05.04.2008].



2 . O historiador Olavo Raul Quandt tratando do Peabiru no seu livro “O Caminho Velho” [Editora Letradágua, Joinville, 2003], dá a sua opinião de que o Peabiru, no trecho catarinense, não seria pelo rio Itapocu, mas pelo “Caminho de Três Barras” e sustenta que mesmo Cabeza de Vaca e sua comitiva não teriam subido o Itapocu, mas também por Três Barras. Diz ele que nos “Comentários” de Pedro Hernández sobre o trajeto de Cabeza de Vaca, o autor usa a expressão “cruzaram pela ria de Itabucu” e que tal versão, por historiadores, foi entendido como querendo dizer Rio de Itabucu. Que, no caso, a ria é um canal e não um rio e que houve nas traduções para o português um erro de grafia. Diz que Hernández refere claramente o haverem passado “pela ponta da ilha”, o que haveria de se referir à parte da Baía da Babitonga onde depois se ergueria São Francisco do Sul. Diz mais que de qualquer modo a expressão “cruzar pela ria” significa passar por ela e que isso excluiria a foz do rio Itapocu, porque as características da foz do rio não permitem a passagem de veleiros transoceânicos, porque o local comporta apenas barcos pequenos pela boca do rio e que a foz do rio em questão não oferece as mínimas condições para desembarque nele e que no litoral de Barra Velha um recife também tornaria perigosa a operação. Que no mais a região da foz seria composta de charcos insalubres, plenos de mosquitos, não sendo propício aos que por ali quisessem fazer entrada. Também argumenta que pelo Vale do Itapocu o acesso aos campos do Planalto é muito mais distante do que se feito por Três Barras. E que nenhuma tradição aponta, para o Vale do Itapocu, o ter havido nele qualquer Peabiru.



Parece-me, dessas palavras, que o historiador Olavo Raul Quandt não deu a devida atenção às palavras de João Sanches, piloto de Cabeza de Vaca, quando este, por Carta a Sua Majestade o Rei da Espanha, explicaria depois o porque optaram em entrar pelo rio Itapocu e mesmo, como ele próprio afirma, em sendo o caminho mais longo e como, na verdade, por sua própria palavra, o Itapocu era efetivamente o caminho mais recomendável.



Vejamos, pois, algumas razões em que me fundamento para rebater o pensamento de Quandt:



2.1. ) Quanto a essa dificuldade geográfica do acesso aos campos do Planalto a partir da região da Baía de São Francisco e via Serra do Mar (Logicamente via o atual Município de Joinville e talvez o monte Crista), o piloto João Sanches (Que esteve com Cabeza de Vaca e depois pilotou o patacho São Miguel), muito experiente que era das coisas do litoral catarinense, ele até ao contrário diz que seria lá o local ideal para a subida por ser o ponto mais perto de ditos campos do Planalto e dos índios amigos dos espanhóis e lá residentes (E, de fato o era), mas ele aponta uma outra razão veemente do porque o porto de São Francisco não foi o utilizado e sim o rio Itapocu mesmo sem porto algum. De fato, escreveu ele a Sua Majestade o Rei da Espanha: “Conta-se de Cananéia a este porto de São Francisco vinte léguas pouco mais ou menos e está deserto de índios”. E diz mais: “Se o dito porto de São Francisco fosse povoado por selvícolas, seria a melhor entrada para se ir terra dentro, na conquista do Rio da Prata, porque deste porto até aos índios amigos dos vassalos de Vossa Alteza há muito pouco caminho e por entre os ditos índios se pode ir à dita conquista. Parece-me que se devia povoar em primeiro este porto tendo em vista a dita entrada” e, em seguida, diz claramente ao rei que foi pelo rio Itapocu que ele e os companheiros entraram anos antes, como que ensejando que esse era o caminho certo, ou seja, por ser ele povoado: “Adeante, oito léguas pouco mais ou menos, está o rio Itapucu que quer dizer Pedra Alta, por onde entramos com o dito Cabeza de Vaca” [João Sanches, in “Carta ao Rei de Espanha”, preservada pelo arquivista de Simancas, datada de 1550, mas que talvez seja de 1553; transcrita no livro “Duas Viagens ao Brasil”, de Hans Staden [EDUSP/Itatiaia, B.Hte, 1974, p. 15].



Portanto é tornado claro e expresso pelas palavras de João Sanches que, apesar de a região de São Francisco do Sul e Joinville possibilitarem mais proximidade com as tribos planaltinas – as especialmente visadas -, o Itapocu se tornava a rota preferencial por ser uma região habitada, ao contrário daquelas outras terras. A razão do porque aquelas áreas não eram habitadas pelos índios, parece também evidenciada na carta do referido piloto. É que, diz ele, faltam planícies apropriadas ao plantio naquela região esmagada entre os montes, entre o mar e a serra. Para assentar gente lá, diz ele, seria necessário acomodá-las dentre os vales, nos poucos terrenos cultiváveis [Carta ref., ed. cit., p. 15]. Ora, poucas léguas ao Sul os indígenas contavam já com uma grande e rasa lagoa formada por imensa restinga na Foz do Itapocu, desde tempo incerto dividida em duas – a Lagoa da Cruz a norte da foz e a Lagoa da Barra Velha ao sul da mesma -, certamente um grande atrativo para a pesca e aldeamento, ao contrário dos manguezais, matagais e serranias de léguas acima. Esses dali e os índios do restante do Vale do Itapocu seriam aquela ajuda que eles europeus necessitavam e conseguiram;



2.2. ) Porque os registros históricos demonstram de modo exuberante que foi pelo menos preferentemente pelo rio Itapucu (Grafia de João Sanches, em 1550 ou 1553) que os governadores e demais autoridades espanholas e lusas, os viajantes e aventureiros adentraram rumo a Assunção ou ao Peru e tendo pelo menos os primeiros deles (Aleixo Garcia e Cabeza de Vaca) recebido dos índios a orientação em tal sentido;



2.3. ) Também, porque esse uso do curso do rio Itapocu como via de entrada para ou sertão, como para por eles vierem os de Castela, era tão intenso por espanhóis e lusos que, vendo perigarem os interesses da Coroa lusa e para evitar conflitos com a Espanha, o Governador Geral Tomé de Souza resolveu trancar o caminho pelo litoral catarinense, visando claramente barrar passagens não autorizadas pelo Vale do Itapocu, do mesmo modo que se fez, também, por determinação real, com relação ao caminho do Peabiru, no trecho que demandava da Vila de São Paulo de Piratininga aos castelhanos assentados no sertão do Paraná e no Guairá.



2.4. ) Além disso, porque o Itapocu tem acesso mais fácil ao sertão, sendo o caminho mais recomendável, geograficamente, já que seu curso de cerca de 100 quilômetros, depois de seu nascedouro na Serra do Mar, corre quase que retamente para o oceano, cortando toda a extensão da planície costeira, é bem navegável por canoas e balsas até o pé da Serra do Mar, com exceção de alguns trechos mais empedrados mas que também ficam bem cobertos nas cheias. Tanto se prestava o rio – agora, mais pobre em profundidade de águas - que o colonizador do Jaraguá, o Cel. Emílio Carlos Jourdan, aqui chegou, vindo de Joinville, trazendo por suas águas, em lanchões e canoas, os colonos e os petrechos, máquinas e o de mais necessário para assentar nova colônia. Pelas palavras de João Sanches, suponho que havia guaranis habitando a região da foz quando da chegada de Cabeza de Vaca, pois aquela região é muito propícia aos índios em termos de pesca, mercê a imensa dupla laguna ali existente, que se tem o tamanho de duas léguas, catorze quilômetros; pois bem, Sanches diz que não subiram por São Francisco justamente pela falta de índios vivendo ali, o que poderia ser transitório, visto que os índios emigram muito, particularmente os guaranis. Outra possibilidade, porém, a mim muito provável, é que Cabeza de Vaca não subiu por São Francisco simplesmente por lá haver habitando índios já fiéis à coroa lusa e mesmo alguns brancos, mas também porque o ingresso pelo Itapocu seria coisa mais oculta, desejando ele, justamente, evitar denúncias lusas de que ele, Adelantado, estava invadindo as terras portuguesas como de fato estava, conscientemente ou não, visto que havia, então, dúvidas sobre por onde deveria passar a divisa dentre os dois reinos. De todo modo, quanto ao Itapocu, arqueólogos localizaram primitivas aldeias no seu curso, em número de três, algo contemporâneas da época da descoberta do Brasil.



2.5. ) Afora tais razões, devo acrescentar que desconheço qualquer autor que refira alguma tradição peabiruana a respeito de passagem pelo monte Crista ou quaisquer outros lugares do Município de Joinville ou São Francisco do Sul. Não que não possa haver tais caminhos; não que não haja alguém afirmado tal tradição; o que digo é que, simplesmente, desconheço alguma, o que não se deve confundir com caminhos de jesuítas e mais religiosos, trilhas de tropeiros e mesmo estradas abertas pelo governo. Pe. Tarcísio Marchiori escreveu para mim, a respeito de uma destas vias antigas na Serra do Mar, dizendo que, dela, sabe-se até o quanto custou a sua abertura. Existe, é verdade, uma tradição de que, a partir da Baía de Paranaguá, indo pelo rio Nhundiaquara, daí ao Porto Real, deste ao Porto de Cima e daí ao sopé da Serra do Mar e por ela acima, se seguia por uma trilha peabiruana usada desde tempos imemoriais, que dava acesso ao Planalto de Curitiba; e que teria sido uma perigosa trilha usada pelos índios desde tempos remotos e, depois destes, também pelos portugueses; e que seguia beirando os grandes abismos da serra, até chegar àquele verdadeiro paraíso de pinheirais, habitado, aliás, por gente pacífica e que de bom grado recebeu os lusitanos.



3 . Enfim, o Vale do Itapocu, assim, e como testemunha o piloto João Sanches, tornou-se a via natural mais adequada, a via optata para os europeus subirem a Serra do Mar. Por semelhantes razões era seu curso e sua foz chamativos naturais, caminhos que demandavam com segurança do litoral ao planalto e deste para aquele, facilitando suas rotas migratórias, já que eram um povo sem sossego, vivendo num permanente vai-vem. E também nessa vivência de busca guaranítica de uma sua Terra Sem Males, o Vale do Itapocu e todo o litoral catarinense desempenharam um importantíssimo papel. Curiosamente, tivemos em Jaraguá do Sul um múltiplo homicídio, quando, sob o desiderato de vingança de um assassinato no Mato Grosso, uma tribo veio a Jaraguá do Sul especialmente para a prática do crime. Conseguiram um chão para suas barracas e, numa de suas próprias viaturas, dirigiram-se à tribo onde praticariam a vindita. Eram a mesma gente. O local, coincidentemente, era pertíssimo do Forum onde eu tinha meu gabinete de promotor de justiça. Desceram do carro, os revólveres escondidos nas costas, enfiados nas cintas e se dirigiram ao acampamento. Chegaram de surpresa. Se aproximaram com gestos de amizade, os braços erguidos alegremente; e os do acampamento corresponderam a tais atitudes, se aproximando deles, incautamente. Todos, menos um jovem que, escondendo-se sob um veículo, aguardou, armado, o desenrolar dos fatos. Nesse momento os recém chegados sacam dos revólveres e passam a desferir tiros, assassinando três pessoas e ferindo mais três. Fogem justamente quando aquele jovem, escondido sob o carro, passa a atirar em defesa da sua gente, ferindo um dos agressores. Foi um acontecimento trágico e de muita dor. Como o chefe dos atacados foi morto, sua barraca e seus bens foram queimados. Das demais vítimas, não sei. Cinco dos seis assassinos foram presos e foram a Júri. Conversando certa feita com alguns dos réus - que a meu ver não eram guaranis como diziam, porque não sabiam uma palavra sequer de tupi-guarani – e como eles me dissessem que Jaraguá do Sul e enfim o Vale do Itapocu era sua terra de migrações costumeiras, lhes indaguei como apelavam a este vale em sua língua, tendo os mesmos dito que o apelavam Piradom; e perguntados por mim do que o nome significava, disseram que queria dizer algo como “chegar-partir” ou, talvez, “partir-voltar”; porque, disseram, a beleza do lugar convidava a que, mesmo partindo, sempre voltassem. Registro essa curiosidade para os interessados. E, no Forum, os autos aguardam os que puderem estudar melhor essa gente, através dos boletins individuais, termos de depoimentos, testemunhos e, talvez, principalmente pelas fotografias. Não assumo isso. Já tenho trabalho que chega. Talvez sejam índios de tradição não-tupiguarani ou, como dizia o povo daqui, eram ciganos. Uma particularidade notei e deixo registrada: pelo menos os homens, adoravam ostentar dentes de ouro, como os ciganos. Eram completamente pacíficos dentre nós, em Jaraguá do Sul, porém a polícia apreendeu dentre eles todos – réus e vítimas – grande quantidade de armas, inclusive algumas Winchesters.

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